“Paraíba, meu amor” é um documentário de 80 minutos, produzido pelo diretor suíço Bernand Robert-Charrue para o público europeu. O filme alterna entrevistas e trechos musicais, e foi gravado nas festas do interior paraibano. Filmado quase todo na Paraíba, um dos pontos altos do filme é o encontro, de Dominguinhos e do acordeonista francês Richard Galliano. Participam também do filme o Aleijadinho de Pombal, o Trio Tamanduá, Pinto do Acordeon e Os 3 do Nordeste.
Em 2009 foi lançado, com bastante divulgação e pompa, o filme/documentário, de produção suíça, “Paraíba, meu amor”. O filme aborda com ênfase o forró. A força musical do forró nordestino. Eu, como amante e metido a colecionador dessa música maravilhosa, fui exultante ver o filme. A seguir faço minha análise crítica do documentário.
Considero a intenção do cineasta suíço muito boa. A idéia de trazer o músico francês, Richard Galliano, para o eixo central do filme foi genial e deu ao documentário, uma qualidade musical de altíssimo nível. Ouvir seu acordeon dialogar com Dominguinhos, Pinto do Acordeom e Aleijadinho de Pombal, para quem aprecia o belo som do instrumento e a doce musicalidade do forró é impossível não se emocionar. Ficou lindo.
Mas o documentário peca em vários aspectos. O primeiro, a definição simplificada e até mesmo historicamente equivocada da origem do forró. Essa história que Forró vem da expressão inglesa For All (para todos), já está ultrapassada, e não resiste ao mínimo de pesquisa histórica sobre a nossa música. Muito antes dos ingleses chegarem para construir as estradas de ferro que levaram partes de nossas riquezas, e a centenas de quilômetros dessas linhas férreas e de qualquer gringo, já se tocava e se dançava um ritmo musical muito próximo do que chamamos hoje de forró.
Nas feiras livres, nos casamentos, nas festas religiosas, nos bailes populares do interior da Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do Norte e Ceará, distando quilômetros de onde estava um inglês com seus trens, se experimentavam os sons dos “pifeiros” com suas flautas de “tabicas” de madeira tirando um som repetitivo, binário. O ritmo dessas “bandas de pífanos” lembra perfeitamente as festas dos nossos indígenas; a percussão, o batuque africano. Sem nenhuma ligação ou influência européia.
No início, denominavam-se a esses encontros com esse tipo de música, de Baile, ou Samba. As pessoas iam pro Samba dançar. O primeiro instrumento “estrangeiro” na música foi o “Harmônico”. Assim, as pessoas batizaram os foles que apareceram trazidos da Europa, sem teclado e sem baixos. Muito parecido com o “Bandoneón” argentino. Nesse momento os acompanhamentos naqueles bailes eram feitos por violas e/ou violões dos seresteiros e repentistas e, principalmente a Rabeca, o violino nordestino. Na realidade, os bailes aconteciam, muitas vezes, juntamente com desafios de violeiros repentistas e apresentações de rabequeiros. Essas festas eram os espaços de comemorações das populações pobres. Um fazendeiro, por hipótese nenhuma, permitia que suas filhas freqüentassem um “baile” desses. A música dançava-se ‘agarradinho’, num “bate coxa”, “rela bucho”, “esfregado”, que era sensualidade pura. Os corpos juntinhos dos casais e os decorrentes namoros e ciumeiras resultavam em muitas desavenças, provocando um verdadeiro forrobodó. Essa expressão alcunhada com certo preconceito pelos das classes dominantes servia para ‘alertar’ as damas donzelas do perigo daquelas festas, realizadas em taperas pobres, geralmente de taipas, com um reboco de barro cru, amaciado pelos pés rachados de quem vivia na dura labuta dos sertões nordestinos, cuidando do gado e das terras dos fazendeiros.
Na música em si, tocada nesses bailes, o instrumento principal era o “Bumbo”, feito de couro de bode e estirado sobre um equipamento de madeira, preparado especialmente para receber o couro do ruminante. É importante destacar que o couro é de bode por dois motivos básicos. Primeiro, a criação da população sertaneja pobre era, além de galinha e porco, o bode. O bode era criado, na maioria das vezes, clandestino, nas terras dos fazendeiros. Clandestino porque o bode come de tudo e não respeita as cercas, nem as demarcações cartoriais, muitas resultados de grilagem. Segundo, o couro do bode é mais fino, porém bastante resistente, permitindo tirar um som mais forte e diversificado. O instrumento básico para “tirar o som” era um pau grosso e seco, podendo ser Jucá ou Pereiro, com uma extremidade enrolada em panos, para o som mais agudo. Do outro lado do Bumbo, usava-se uma varinha de marmeleiro meio verde, ainda flexível, para o som mais grave. Isso era o essencial para o baile. Claro que se tivesse uma banda de pífano, uma rabeca, uma viola ou um violão, o baile ficaria mais animado. O “Harmônico” aparece pelo interior nordestino, em meados do século XIX, mas não conseguiu se popularizar. Quem se popularizou foi o “fole de oito baixos”.
Esse reproduzia o som frenético dos pifeiros, substituía a rabeca e conseguia acompanhar o ritmo da dança do “rela bucho”, arrastando os pés no chão batido dos terreiros sertanejos. Com o fole de oito baixos surge o forró como o conhecemos hoje. O que há de impressionante é que esse ritmo surge com grande diversidade em todo interior nordestino. Nos brejos, sopés e altos das serras. Nas “panhas” de algodão, entre os tangerinos de gado, no pastoreio dos caprinos, nos mutirões dos tropeiros, nos aboios saudosos das pegas de boi; depois das novenas, nas “quermesses”.
Em toda parte a massa popular dança, canta e brinca nos diversos ritmos que compõem o hoje chamado forró. O Baião, o Samba Nordestino, o Arrasta-pé ou Marcha, o Forró, o Xote, o Calango Mineiro, a Toada, o Lamento Sertanejo, etc., são todos ritmos sob o guarda chuva do chamado Forró. É importante salientar que, o Forró surge apenas como música instrumental, sem letras. Era comum colocar-se a música numa daquelas histórias ou crônicas dos folhetos de cordéis. A Asa Branca foi um desses casos. As letras da música de forró são, inicialmente, na realidade, crônicas do sertão nordestino, da vida rural do semi-árido.
Depois, tornam-se também, narrativas de uma vida semi-urbana e semi-rural. O Forró chegou às cidades do interior sertanejo, nas maiores e menores, preferencialmente nas periferias, ou melhor, nos cabarés, nas “casas de socorros” da matutada. No início do século XX e até pouco tempo perdurava, nas maiores cidades do interior nordestino, como Campina Grande, Caruaru, Feira de Santana, Vitória da Conquista, Mossoró, etc., nas feiras livres, mesmo durante o dia, os “cabarés de feiras”, estes ficavam apinhados de “matutos” em busca de “relas buchos”, de “esfregado”, de “bate-coxas”. Ao som do Zabumba misturavam-se os gritos dos feirantes e dos dançarinos. O preconceito contra os forrós era enorme. Era coisa de pobres, matutos e prostitutas.
Essa riqueza melódica só ganhou notoriedade nacional com Luiz Gonzaga, na década de 1940, mesmo assim, com toda carga de preconceitos conhecidos, característicos dessa sociedade classista e racista brasileira. Um negro mulato, pobre, “nortista” muda a história do forró e da música brasileira. Primeiro o Rio de Janeiro pára pra ouvir aquele ritmo. Na época do impulso da indústria fonográfica foi rápido sair do Rio e conquistar o Brasil.
Quando Gonzaga, em 1941, desistiu de tentar, com sua sanfona Todeschini, imitar os sons dos acordeons europeus, tocando valsas, polcas, ou os sucessos internacionais da época, como os boleros cubanos, as músicas americanas; e procurou imitar com uma sanfona de 80 baixos, um legítimo forró das bandas da Chapada do Araripe (divisa do Ceará, Pernambuco e Piauí), tocado por um fole de 8 baixos, explodiu. As primeiras músicas que Gonzaga conseguiu gravar: “Vira e mexe” e “Pé de Serra”, de 1941, é negócio de louco. É o Sertão em forma de som. Qualquer um que conhece o nosso Sertão e ouvir aquilo sente a alma nordestina brotando naqueles acordes. Dali em diante o Forró chegou a todos os recantos. Gonzaga foi transformado, com justiça, no ícone, na referência, disso tudo.
O Brasil passa a se interessar pelo Brasil de dentro, de suas entranhas, de seus sertões, do seu Nordeste. Nesse aspecto a música de forró é a expressão mais fiel do modernismo brasileiro, de buscar sua essência, de procurar entendê-lo em sua alma, de exibir nossas contradições. O forró gonzagueano é isso. É a contradição viva de nossa vida. É a crônica melódica de nosso cotidiano. Numa sociedade de classes como a nossa, lógico, a música como todo movimento cultural, é apropriada por interesses da classe dominante, Gonzaga e o forró foram.
Só muito tarde o ritmo ganhou os salões da elite econômica nacional, pois esta torcia o nariz para a cultura popular brasileira e buscava ser européia em seu consumo, embora se mantivesse servil e escravocrata em seu comportamento social. O forró conquistou também a elite intelectual. No final dos anos 40 depois da Asa Branca, gravada em 1947, e início dos 50, Luiz Gonzaga tornou-se a maior estrela da música popular brasileira, bateu todos os recordes de venda de disco e o “Baião” passou a ser ritmo de “doutor”, como dizia Gonzaga em suas apresentações. “Até Tom Jobim gravou Baião”.
O Forró também virou mercadoria e um negócio dos bons. O sucesso era tanto que Pedro Sertanejo criou uma gravadora, a “Cantagalo”, exclusiva para forrozeiros nordestinos que, na onda de Gonzaga conquistaram o Rio e o Brasil. Outras gravadoras entraram no mercado e o Forró explodia como sucesso no país todo, mas continuava o mesmo nas salas de reboco e nos terreiros das fazendas nordestinas. Gonzaga define o trio sanfona, zabumba e triângulo, como a base da síncope do forró, embora que nas latadas, nas salas de reboco dos sertões sempre estão juntos ao Trio, o pandeiro e o violão. E nas gravações, o próprio Gonzaga incrementava com violões e depois com a bateria. A essência, o dominante desde Gonzaga, era a sanfona.
No pipocar do sucesso nacional do Forró, grandes artistas puderam ser conhecidos. Verdadeiros gênios, mestres da sanfona, no fole de oito baixos. Poetas magistrais do sertão nordestino afloraram. O Forró ganhou palco, ganhou cidades. Campina Grande e Caruaru, desde os anos de 1960 disputam quem é a capital do forró. Agora entrou na briga Aracaju, mas hoje, em função de turismo, apenas de negócios de caráter econômico. A música em si sofreu tremenda agressão nessa lógica puramente mercadológica e vulgar que domina a mídia e as emissoras de rádio nos dias de hoje.
Porém, a música de forró com seu ritmo, utilizando-se de equipamentos modernos, de novos instrumentos para enriquecer o ritmo e toda sua beleza melódica continua viva e forte entre as massas populares e as pessoas que estão livres dessa massificação da vulgaridade conduzida apenas por interesses econômicos. O Forró de verdade, jamais morrerá. Enquanto existir Sertão, Nordeste e pessoas lúcidas, de bom gosto, a música de forró continuará sendo renovada e enriquecida.
O filme “Paraíba, meu amor” é, portanto, na minha modéstia opinião, nesse aspecto: superficial, raso. Continua faltando um documentário a altura do forró. Não posso imaginar uma abordagem do forró na atualidade sem uma recorrida geral pelos principais nomes dessa música. Do passado e do presente.
Como fazer um documentário sobre o Forró sem ouvir Geraldo Correia e Zé Calixto, que estão vivíssimos e foram junto com Jackson do Pandeiro, os maiores nomes do forró paraibano. Segundo Dominguinhos, Geraldo Correia é o maior tocador de fole que ele conheceu em todos os tempos. Pois é, o documentário sequer os cita, quanto mais entrevistá-los, apresentá-los, etc. E Abdias, Marinês, Messias Holanda, Zé Catraca, Elino Julião, João Gonçalves, o grande Zito Borborema, Anastácia, Genival Lacerda e uma gama de astros do Forró que atuaram ou atuam, viveram ou vivem na Paraíba e sequer foram mencionados?! E os grandes dos 8 baixos, para citar alguns: Gerson Filho, Severino Januário, Pedro Sertanejo? E o Trio Nordestino? Depois de Gonzaga, quem mais vendeu disco de Forró no Brasil. E os grandes compositores como Zedantas, Humberto Teixeira, Zé Marcolino, Rosil Cavalcanti, João Silva e o grande e genial Antônio Barros? Uma penca de autores de altíssimo nível que simplesmente não existem no documentário.
Infelizmente, a lista de ausência é inúmeras vezes maior do que a dos presentes. No entanto, alguns que representam muito nessa história não poderiam estar ausentes. Como falar de Forró sem ouvir as posições de Biliu de Campina, o nosso antropólogo do Forró. Fonte de qualquer pesquisa séria nessa área. Como falar de forró na atualidade e não ouvir Flávio José? E Santana? Como falar de “Paraíba, meu amor”, abordar o tema Forró e sequer mencionar Sivuca? Não! É incompreensível.
O roteiro do documentário parece ter sido de Chico César, de quem gosto muito e aprecio bastante sua música, porém, demonstrou entender pouco de forró. Aliás, Chico César diz um monte de coisas erradas no filme. A começar pela origem do forró. Demonstra ter lido pouco sobre Gonzaga. A música “Paraíba”, de Gonzaga e Humberto Teixeira, feita por encomenda para a campanha de Argemiro de Figueiredo e Pereira Lira em 1950, não tem como centro a mulher paraibana, como cita Chico César no documentário, mas o estado da Paraíba.
Quem leu, viu e ouviu Gonzaga sabe disso. O que “encafifava”, termo gonzagueano, os poetas naquela época era essa coisa da Paraíba ser nome de um estado, em decorrência de um rio, mas todos chamá-la no feminino, ao contrário dos demais estados brasileiros que carregam nomes de rios, que tem a terminação no feminino, mas são estados masculinos, como Paraná, Pará, Amazonas, etc. Além disso, queriam homenagear a participação da Paraíba no Movimento de 30. Ora, a Paraíba, pequenina, mudara a história do Brasil, com sua participação decisiva na “Revolução”. Zé Pereira, o Coronel de Princesa, havia sido derrotado, mas seu sobrinho, Pereira Lira estava agora pleiteando uma vaga no Senado Federal, daí o “eita pau Pereira que em Princesa já roncou, eita Paraíba teu bodoque não quebrou”. Nos shows de Gonzaga na Paraíba ele contava a história da música, proseava, falava do lançamento da música em Campina Grande, na Praça da Bandeira, do tiroteio, das mortes e da campanha de Argemiro.
Brincava com a Paraíba. No livro de Dominique Dreyfus, “A Vida do Viajante”, a autora descreve a historia e mostra o duplo sentido da música, com o estado e com a coragem da mulher paraibana. Chico César não entendeu assim.
Considero que o filme forçou a barra para mostrar o Trio Tamanduá na fazenda Tamanduá do suíço Pierre, em Santa Terezinha, vizinho a Patos. Talvez por questão de patrocínio ou proximidade étnica (???!!!!)
Os aspectos a destacar do filme são as participações maravilhosas de Pinto do Acordeon, Aleijadinho de Pombal, Dominguinhos e o magnífico som de Richard Galliano, além da bela fotografia. A participação de “Os três do Nordeste” é ridícula para a obra gigantesca desse excelente grupo musical. O aspecto da dança de forró também deixa a desejar. Enfim, a idéia foi muito boa mas, como disse no início, está muito aquém de nossa música. O “Viva São João” de Andrucha/Conspiração e Gilberto Gil é superior.
Desculpem a chatice, mas nesses tempos pueris é preciso.
Jonas Duarte, apaixonado por forró. O de verdade, não essa porcaria que comercializam vilmente contra nossos jovens.
Professor doutor do Departamento de História da UFPB, em João Pessoa - PB.
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